sábado, 5 de junho de 2010

LENDO E DISCORDANDO

Consolidando o que pode ser uma seção de "metacrônica" neste blog, volto a comentar um texto publicado na imprensa. Hoje é a coluna de Marcelo Adnet no Globo deste sábado.

Devo dizer que, ao contrário do Roberto Pompeu de Toledo, que seria um insuspeito entendedor de futebol por trás da seriedade e da profundidade dos seus demais textos, Adnet parece, com todo o respeito que o trabalho de qualquer um merece (mas quem vem a público tem que se sujeitar à crítica), mais um "engraçadinho" que convidam para dar pitacos numa área até dada à piadas, mas só para quem acompanha o nobre esporte bretão.

No campo da literatura humorístico-desportiva, aplaudo o Arthur Muhlenberg, que eu já vi na arquibancada do Maracanã, até porque ele tem o bom gosto de ser rubronegro, o que também falta ao Adnet.

Pois bem, em que pese a interessante e apropriada comparação entre a relação do torcedor com seu time de futebol e os relacionamentos amorosos, com a qual concordo quase que integralmente, o colunista foi muito mal no principal tópico de texto de hoje.

Ele resume sua ideia logo no primeiro parágrafo da página 6 do Caderno de Esportes do Globo:
"Pra maioria dos brasileiros, a Copa do Mundo é o maior feriado do calendário... Pois a Copa é a chance de curtir um feriadão temático! Vamos tentar olhar de fora: um monte de gente vestida de amarelo sai às ruas soando cornetas estridentes, se jogando espuma, muitos vestem perucas. Todos bebem muito, bradam gritos, se reúnem por duas horas em frente á TV e depois continuam a beber e a celebrar até tarde.".

Se ficasse aí, até que eu não discordaria muito. Ele até segue mais adiante, destacando o paradoxo da nossa Seleção quase não ter ninguém jogando no país, e quase todos estarem fora do Brasil há muito tempo. Também são colocações pertinentes.

Entretanto, depois disso o colunista passa a filosofar, e aí começa a se enrolar. Vejamos:

"Amor ao Brasil? O que é o Brasil? (...) Amor ao país mesmo deve ter a Bósnia. Depois de séculos de dominação, o país se declarou idnependente e encarou, por declamar (sic) a independência, uma guerra sangrenta imposta pela Sérvia. De 92 a 95, cidades históricas, mesquitas, vilarejos e a capital, Sarajevo, estavam devastadas. (...0 Em novembro de 2009, a seleção bósnia precisava empatar com Portugal, em Sarajevo, para ir à Copa. Um a zero para Portugal... Essa derrota deve ter doído, nacionalisticamente falando. Este é um país louco pra celebrar seu território, sua língua e a bandeira. Nós não."

Quer dizer que só quem foi à guerra tem direito de invocar sentimento nacional? Por favor... A ideia cheira a naftalina. Parecem aqueles milicos de pijama, reaça futebol clube, que dizem que o Brasil não vai para a frente porque nunca teve uma guerra devastando o país. Como se nós precisássemos mais do que nossa classe política, ou melhor, do que nossa ignorância e inapetência políticas para fazer tamanho estrago...

Para além de ecoar um conceito absolutamente torto de nacionalismo, e aqui recomendo um pouco de Jurgen Habermas ao caro colunista, neste ponto ele trai uma intimidade não tão grande com o espírito que perpassa a história do nosso futebol.

Deve ter doído aos bósnios a derrota para Portugal em casa? Com certeza. Mas qual é a maior tragédia popular do Brasil? Nem o suicídio de Getúlio Vargas ou a morte de Tancredo Neves chegam perto do que foi a comoção da perda da Copa de 1950. Não digo quanto a efeitos práticos, na vida do dia-a-dia, mas falo da chaga emocional, da cicatriz que foi talhada na memória coletiva dos brasileiros.

Quem é da época só lembra com a mesma nitidez o momento em que o homem pisou na Lua (isto sem contar que, a acreditar em todos que dizem ter estado no Maracanã, o público seria algumas vezes superior aos 200 mil daquele fatídico 16 de junho, o que denota a ânsia em participar de um momento realmente histórico).

Mas o colunista segue, ao afirmar que não seríamos "um país louco para celebrar seu território, sua língua e a bandeira":

"Simplesmente porque nós não somos oprimidos. Ao contrário, somos opressores que não deixaram vestígios. Somos descendentes de europeus ou africanos que se instalaram no lugar dos índios. (...) O brasileiro diz que aqui não tem guerra, somos pacíficos. Diz então o que aconteceu com os índios? E com os paraguaios?"

Esquerdopatia pura e simples. Simplifica uma questão complexa e traz à tona o batido e ingênuo discurso de que esta geração é responsável pelo que ocorreu séculos atrás. Alguém aí conhece um vizinho caçador de índios?

Além de tudo, ainda dá a entender que os negros também tomaram parte na opressão aos índios! Acho que faltei a esta aula de história...

Mais grave: pelo raciocínio do Adnet, somente índios são brasileiros de verdade! Desculpe, apesar de ser descendente de paraense e, portanto, ter uma grande probabilidade de ter um ascendente indígena, tal afirmação me ofende. Sou tão brasileiro quanto qualquer um, seja amarelo, vermelho, azul, negão ou branco azedo.

Outro sinal da esquerdopatia é culpar-nos por termos nos defendido da agressão paraguaia. Houve eventuais excessos das tropas na invasão àquele país. Certamente temos que refletir sobre isto e eventualmente expiar nossa culpa como Nação, mas em guerras, ninguém sai com a consciência tranquila. Daí a jogar no lixo nossa maior campanha militar, como gostam os comunistoides de plantão, é simplesmente inaceitável; síndrome de colonizado pela Internacional Socialista.

Voltando ao futebol. Com certeza, muita gente postada à frente das TV's neste próximo mês é como a grã-fina do Nelson Rodrigues: não sabe nem quem é a bola. Mas todo o ritual muito bem descrito pelo próprio Adnet no início de seu texto, e transcrito aqui (um monte de gente vestida de amarelo sai às ruas soando cornetas estridentes, se jogando espuma, muitos vestem perucas. Todos bebem muito, bradam gritos, se reúnem por duas horas em frente á TV e depois continuam a beber e a celebrar até tarde) é justamente um povo ávido por comungar de algo. Por celebrar alguma vitória juntos. A Copa é uma das poucas oportunidades em que podemos almejar ser grandes, vencer como coletividade.

Se o frenesi auriverde que pinta ruas e muros e veste crianças e velhinhos não é uma loucura de celebrar sua bandeira, não sei mais o que pode sê-lo.

Pode ser só desculpa para beber e azarar. Pode ser muita festa por um assunto desimportante, mas, como diz o Milton Neves, "o futebol é o mais importante dos assuntos sem importância".

É por isto que sou um apaixonado por esporte. De longe, ele é a maior expressão cultural do Brasil. É por ele que somos admirados no exterior. É por meio dele que descobrimos nossos sentimentos mais elevados em relação ao nosso país. É através do esporte que vemos o que pode ser um Brasil que dá certo.

Milhões de pessoas não ficam em torno de um time por acaso. Não importa quem esteja com aquela camisa, o país está atrás de cada jogador, mesmo discordando deles. A pressão, o debate, a "cornetagem" existe porque exigimos deles não menos do que a glória; nada menor do que a grandeza.

Há alguns posts atrás ("Pátria de Chuteiras"), tracei um paralelo entre a história do Brasil e a história da Seleção nas Copas do Mundo, como se o time fosse um espelho da Nação. Agora peço licença a um expoente da minha área, o jurista Luís Roberto Barroso, também ele um apaixonado pelo Brasil e pelo esporte, para usar uma bela figura sua: a seleção, além de ser espelho, também é a janela por onde vemos o quão grandes queremos - e podemos - ser.

2 comentários:

Beto disse...

Deixo de comentar este post por não ter lido o autor criticado. Atualmente sinto falta de bons articulistas. Por sorte ou azar cresci lendo: João Saldanha, Nélson Rodrigues, Sandro Moreyra, Armando Nogueira, José Ignácio Werneck e outros, hoje em dia está triste, tirando o Tostão... O Globo quis inventar, acho que se deu mal, a turma é bem fraquinha, A ESPN é o atual reduto dos raivosos. Tá difícil.

Unknown disse...

Entrei aqui pq vi a abertura dos jogos ontem e, hoje, com o jogo África do Sul x México, já me contagiei totalmente com o sentimento de torcedora e imaginei que meu antigo chefe teria algo para dizer a respeito da Copa, até pq imagino que ele já esteja nas suas "sagradas férias esportivas"! Amei o texto! Conheço o Adnet da comédia teatral e ali ele é excelente, mas tem 20 e poucos anos, devia ter mais cuidado com o que critica (como eu tenho). Seja como for, parabéns Fernando! O blog tá ótimo e na ativa!