quinta-feira, 3 de junho de 2010

A PÁTRIA DE CHUTEIRAS

Minha recente viagem de férias atrasou toda a leitura semanal que procuro fazer, inclusive meus exemplares da revista Veja. Por conta disto, só agora posso repercutir o sempre interessante artigo de Roberto Pompeu de Toledo no exemplar de 19 de maio.

Sob o título Talibãs de Chuteiras, o fabuloso cronista critica não só a postura do Dunga, como dos anúncios da Brahma, que evocam um certo espírito guerreiro que ele considera incompatível com o futebol. Alguns trechos merecem ser transcritos (na verdade, o texto inteiro merece citação, mas não há espaço para isto):

"A temporada de Copa do Mundo começa mal. Logo de saída, o técnico Dunga nos ameaça com patriotismo. Nada menos do que patriotismo! Um anúncio de cerveja na televisão, no ar faz algumas semanas, já batia na mesma infausta tecla. (...) O anúncio da cerveja... já nos ensinava que Copa do Mundo é 'guerra'. Vai-se para um jogo do Mundial, segundo prega uma das peças publicitárias, 'como quem vai para uma batalha'. Alguns jogadores aparecem em cena secundando o técnico no ímpeto belicoso. 'É o Brasil contra o resto do mundo', anuncia o locutor. 'Vamos para a guerra juntos.' (...) O resto do mundo que se cuide."

Segue fazendo pertinentes colocações sobre tal raciocínio, a equiparação do adversário esportivo a um inimigo e o entranhamento de tal cultura no seio das torcidas organizadas dos clubes brasileiros. E arremata mais adiante:

"O técnico da seleção transmite uma visão sacrificial do futebol. (...) A infelicidade é o caminho pelo qual se chega ao triunfo. A alegria que pode (e em princípio até deve) haver numa disputa esportiva desaparece sob os imperativos da renúncia e da abnegação. Futebol é jogo, e jogo é brinquedo. (...) Dunga e a cerveja, com seus arrebatamentos cívicos, seu espírito 'guerreiro' e sua busca de inimigos, passam longe das noções de jogo e brinquedo. Sob a inspiração deles, quem entra em campo é o talibã de chuteiras."

Adoro os textos do Roberto Pompeu de Toledo e este também não é uma exceção. Entretanto, gostar não significa necessariamente concordar: será que estamos assim mesmo? Estamos "fundamentalizando" nosso futebol?

Deixados os exageros da Comissão Técnica e da mídia à parte (e eles já foram objeto de crítica em post anterior), não acredito que o espírito em voga para a Seleção nesta Copa seja assim tão pernicioso. Muito pelo contrário.

Desde o início deste blog, tenho afirmado que o esporte talvez seja a maior expressão da cultura brasileira. Eu acredito fielmente nisto. O próprio nome do blog já traduz esta ideia, que é declaradamente uma paráfrase da genial expressão de Nelson Rodrigues, reproduzida no título e mais do que apropriada para este post: "A Seleção é a pátria de chuteiras".

Embora a expressão possa ter sido cunhada num cenário mais ufanista, entendo que podemos reinterpretá-la num conceito mais contemporâneo, de orgulho pela melhora de nós mesmos, da superação de nossos defeitos.

No caso brasileiro, o futebol pode ser - e muitas vezes o é - exatamente isto. Em 1958/62, a vitória foi a expressão de esperança no futuro, o olhar que espiava um país que tentava sair da insignificância (assim como tentava JK com seus "50 anos em 5"), e o fez justamente dentro das quatro linhas.

Em 1970, para quem não se rendeu à miopia esquerdista que torcia contra, a Seleção representou, mais do que a renovação da crença no "Brasil grande" preconizado pela ditadura militar, a certeza de que o país continuava alegre e nós poderíamos ser brasileiros sem nos rendermos à carranca de alguns generais que se levavam a sério demais.

Em 1994, título do qual Dunga foi o capitão, a redenção do tetra coincidiu com a vitória sobre a inflação, que solapara o país nos mesmos 24 anos em que passamos uma longa noite sem títulos mundiais. E é esta vitória que estabelece as premissas para a Seleção de 2010.

A conquista de 1994 foi a vitória da "realidade", ou seja, do reconhecimento de que só o talento já não mais bastava. Era necessário trabalho duro, dedicação à equipe e a busca obstinada pelo objetivo pretendido. Eram, coincidentemente, as mesmas características que levaram o Plano Real a dar certo e que recolocaram a economia do país nos trilhos, consolidando a redemocratização iniciada uma década antes.

Aliás, reside aí outra coincidência. Depois de uma década de 70 com times não mais do que medíocres nas Copas da Alemanha e da Argentina, o Brasil voltou a encantar o mundo em 1982, mas perdeu. Na "vida real", o país voltava à democracia com eleições gerais no mesmo ano e com a eleição de um presidente civil no final de 1984, mas a vida econômica continuava empacada, malgrado os geniais "planos" de estabilização que pontuaram aqueles anos.

Depois de 16 anos daquele título, durante os quais o país experimentou o que é ter uma vida normal (e a Seleção conquistou com eficiência mais um título mundial, em 2002), chegamos em 2010 começando a perceber que o destino do país tem que residir nas mãos dos seus cidadãos; seu progresso depende do trabalho de cada um, da capacidade de planejamento e ação das diversas instituições.

A Seleção do Dunga traduz isto: conquistas, só com trabalho duro. Talvez para o articulista citado acima, a ideia possa genuinamente parecer estranha. Sua geração cresceu sob a alegria e a magia do futebol de Pelé e Garrincha, e a promessa do "país do futuro".

Mas a geração atual sabe que o futuro tem que chegar, tem que ser hoje. Melhor ainda, o futuro tem que ser "buscado". É isto que se tem feito no dia-a-dia dos brasileiros, e parece que é isto que os referidos comerciais buscam lembrar com suas mensagens.

Para o brasileiro comum, um "guerreiro" é aquele que trabalha duro, se empenha em melhorar de vida. Tem sido assim que a chamada classe C tem elevado seu padrão sócio-econômico, e que as classes D e E têm ascendido à mencionada classe C, nova queridinha dos publicitários.

A cervejaria está tentando "fisgar" estes consumidores. As pessoas que estão conseguindo as pequenas e grandes coisas da vida por meio do trabalho duro; do sacrifício da condução diária; das horas extras longe da família; da faculdade à noite.

É este o espírito guerreiro.

Nada mais esperável, portanto, que a Seleção que encarnou todas as diferentes fases históricas do país, também encarne este novo espírito, que graças a Deus, vai se incorporando à mentalidade dos brasileiros.

A Seleção é a Pátria de Chuteiras, portanto, porque ela é o símbolo das nossas aspirações mais elevadas. Foi no futebol que o Brasil pela primeira vez foi grande. É no futebol em que somos admirados pelo mundo. É com o futebol que o brasileiro sente orgulho de si mesmo e de seus compatriotas.

Qualquer um que já foi ao exterior sabe o que é isto: o que um Pelé, um Zico, um Ronaldo tem de aproximar qualquer um a quem se declara brasileiro. Ou seja, por meio dos nossos ídolos, um estrangeiro se comporta justamente como nos orgulhamos de ser em nosso país: ele se aproxima e "abre a guarda" para um estranho, neste caso, um de nós.

Somente no futebol nós não nos contentamos com qualquer coisa. Queremos o melhor, queremos sempre o primeiro lugar. E, como sabe bem o Dunga e todos os campeões de 1994, muitas vezes o título já não é suficiente: temos também que dar espetáculo, mostrar o quanto somos bons; encantar e aparvalhar o mundo com nossa inquestionável capacidade.

O futebol nos trouxe nossa primeira glória, e outros esportes vieram depois. Na esteira disto, ele se tornou o primeiro campo em que nos tornamos efetivamente conscientes das nossas possibilidades e de nossas responsabilidades, em que exigimos efetivamente compromisso, resultado, qualidade.

Tenho dito em diversos posts que o esporte pode ser uma poderosa mola que nos impulsionará rumo a uma sociedade melhor, e o futebol, mais do que fazer isto no plano material, o faz naquele ideal, desperta os sentimentos mais elevados em relação à nossa nação.

Portanto, quando, na Copa, é "o Brasil contra o resto do mundo", é porque somente aqui, no futebol, há só um lugar que queremos, e ele está lá em cima. E como só há lugar para um, todos passam a ser adversários a serem derrotados.

Veja-se bem - e também já falei disto antes neste blog -: adversários a serem derrotados, não inimigos a serem eliminados. Para que o Brasil seja realmente grande, precisamos dos alemães, argentinos, italianos e (toc, toc, toc) franceses cruzando nosso caminho. Precisamos provar que podemos batê-los.

E precisamos batê-los. Precisamos continuar a construir nossos heróis. A Copa é a nossa guerra, o lugar onde forjamos nossos mitos coletivos. E aqui, evoco um dos nossos grandes cronistas esportivos, alguém que sempre entendeu o esporte como lugar de beleza, mas também sabia admirar a epopeia traduzida em glória esportiva: Armando Nogueira. Dizia ele (e sei que não o faço com as exatas palavras) que "feliz é o país que não precisa de heróis feitos no sangue dos campos de batalha, mas que os cultiva nos alegres campos verdes do futebol."

Nossa guerra desperta sorrisos até em nossos adversários. Somos um exército que conquista pela beleza, mas que agora aprendeu a deixar a ingenuidade de lado e é maduro o suficiente para saber que a vitória, no futebol assim como na vida, não vem sem sacrifício.

2 comentários:

Beto disse...

Meu caro Fernando
Seu texto está muito bem escrito o que torna questioná-lo tarefa árdua. Atrevo-me a dizer que você ao analisar a relação do país com nossas vitórias nos campos de futebol, nas diversas copas ganhas, o faz de uma forma quase psicanalítica. Você fala em heróis e ídolos. Sinceridade? Isto me assusta.Vejo as figuras de ídolos e heróis com um olhar turvo. Uma ida a simples dicionário mostra a associação que ídolos e heróis têm com os deuses e semideuses e nós, simples mortais não devemos questioná-los, quanta pretensão. Desta maneira estaríamos livres para segui-los e eles que pensem por nós. Que perigo, heim? Não fique chateado com este seu leitor, tenha a certeza que procuro as palavras menos duras para não melindrá-lo, mas vejo a psicanálise como um dos grandes engodos que nos foi legado.O mundo do futebol que vemos e acompanhamos é uma pequena ponta de um gigantesco iceberg. Kaká ganhar alguns zilhões de euros é uma ínfima realidade. O normal são os zilhôes de fulaninhos espalhados pelas miríades de timequinhos que disputam segunda, terceira, quarta divisão, divisão de acesso e o diabo neste gigantesco Brasil, que talvez nem ganhem salário mínimo. O time de Dunga, apenas para ficarmos no âmbito do excrete canarinho é quase uma ficção, tê-lo como paradigma é no mínimo crueldade com a massa de brasileiros que os vêem como padrão, ignoram completamente um pensamento de Paul Samuelson, professor e Nobel de Economia, mais ou menos nesta linha: ”se um pobre fizer um grande esforço um dia poderá ser rico, mas se todos os pobres fizerem um grande esforço a maioria não conseguirá a riqueza daquele”
Aquele abraço do,
Beto

Felipe Barbalho disse...

Animal,
Ótimo post!
Linda análise. Assino embaixo.
Só continuo a discordar da forma como essa postura guerreira é comunicada pela cervejaria, com uma visão de confronto excessivamente violenta. Além do mais, como você viu no Doido por Copa, tem como uma propaganda emocionar de uma forma muuuuuito melhor.
Beijos!