domingo, 1 de junho de 2014

APESAR DE VOCÊ

Faltam onze dias para a Copa do Mundo e tenho visto que, assim como a mim, agride a diversos conhecidos a amargura e o desânimo com que estamos encarando a Copa que deveria ser o Mundial de nossas vidas. Nossa geração está tendo a oportunidade de sediar uma festa inigualável, celebrando o esporte que é traço de nossa cultura nacional, e todos estamos parados, abúlicos, assistindo o roubo de uma de nossas alegrias genuinamente coletivas.

Antes de agora, somente a geração de nossos avós teve a possibilidade de receber uma Copa do Mundo, e mesmo assim antes de termos construído os mais incríveis capítulos da linda história de amor entre o Brasil e o Futebol. Como já disse aqui anteriormente, o sentimento de que perdemos a Copa que poderíamos ter ganho independentemente do resultado em campo está contaminando a ocasional vitória que esperamos a cada quatro anos.

Sim, porque a cada quatro anos, enquanto onze bravos vestem nossas cores em algum lugar do mundo, nós vestimos nossas cores em casa e na rua, choramos e comemoramos juntos o fato de estarmos sob a mesma bandeira, de compartilharmos a paixão por algo tão prosaico como um jogo de bola, mas tão crucial como a reafirmação do orgulho nacional. Torcemos também pelos jogadores, alvos de nossa admiração e de nossas críticas, mas torcemos mais do que tudo por nós mesmos, na medida em que a Seleção é o repositório de tudo aquilo que sublimamos no cotidiano de um país que nos promete muito, mas que sistematicamente nos nega outro tanto.

Já afirmei isto em outras ocasiões neste bloguinho: a Seleção é o Brasil que nos ensina que podemos dar certo; que podemos ter qualidade no que fazemos, sem nos despir do espírito que nos faz brasileiros. É isto que está escondido por trás de cada gol feito ou sofrido.

Há algum tempo atrás descobri, com meu compadre Leonardo Espíndola, que eu não era o único maluco que media sua vida tendo como parâmetro as Copas do Mundo. Aprendi que muitas outras pessoas comparavam sua vida com o marco dos quatro anos anteriores. O que fazia, como eu estava nas Copas de 2010, 2006, e assim por diante? Isto pode dar uma nova perspectiva ao caminho que fazemos nestes quadriênios. Se faz sentido para indivíduos, por que não faria para o país como um todo, ainda mais considerando a força de celebração coletiva que tem o futebol?

Neste caso, nossos títulos refletem bem este paralelo. Em 1958 o país vivia no Governo do "Presidente Bossa Nova", Juscelino Kubitschek, um momento de esperança no futuro, de vontade de realização, com a construção de Brasília; com o ímpeto de industrialização e urbanização do Brasil. O momento dos "50 anos em 5". 1962 foi a confirmação da singularidade daquele time maravilhoso (na minha opinião, o maior de todos os tempos, até mesmo do que a Seleção de 1970), mas que, cansado pelo tempo, já mostrava alguns sinais de desgaste. Enquanto dentro do campo soubemos nos reinventar, fora dele caminhávamos para os mesmos erros de sempre...

E aí veio 1970. Ditadura brava e um time espetacular. Como torcer para uma Seleção que poderia ser o espelho de um "Brasil Grande" repudiado por muitos? São vários os relatos de perseguidos políticos que tentaram, mas não resistiram à magia de um esquadrão que encantou o mundo inteiro. E não resistiram porque a Seleção não era daquele ou de qualquer outro Governo. A Seleção é uma expressão do país, o produto acabado (ou às vezes nem tanto) de uma série de valores imateriais que, pertencendo a todos nós, não são de propriedade de ninguém.

Em 1994, tivemos a mais polêmica de nossas conquistas. Um título que chegou a ser comemorado de mau humor por alguns que não reconheciam que o país poderia vencer de muitas formas; que os novos tempos demandavam uma postura mais madura e racional. Muitos dos detratores de então se derramam em elogios para o tique-taque da Espanha de hoje, que nada mais é, na minha humilde opinião, do que a reedição da obsessão pela posse de bola do time de Parreira, com a desvantagem de que eles não tem Romário e Bebeto lá na frente.

E, finalmente, 2002. Depois de um vice-campeonato em que não soubemos reconhecer nossos limites, criando teorias conspiratórias para ocultá-los de nossos olhos, fomos ao Oriente com um técnico que sabia traduzir o sentimento que girava em torno da Seleção. Felipão foi o homem certo na hora certa. Ele resgatou craques em frangalhos e um time humilhado e transformou-os naquilo que sempre foram: o repositório da esperança e da alegria de todo um país. Por um breve mês, testemunhamos novamente o que nossa capacidade de trabalho e superação podem fazer.

Pois bem, depois de passarmos 2006 e 2010 deslumbrados em ilusões de como seríamos inigualáveis ou de como resultados ocasionais nos tornariam imunes a qualquer revés (e olha o paralelo com a vida nacional novamente...), chegamos a 2014 no cenário depressivo que descrevi acima e que todos os meus 5 leitores percebem. Mas estamos, eu e todos com que converso, incomodados com isto. A desilusão com nossa classe política não pode permitir que nos seja levado, além "tudo o que já tinha para ser roubado", também o que não poderiam tomar de nós.

Como falei ali em cima, assim como a Seleção não é de nenhum Governo, a alegria da Copa também não tem cor partidária. É verde-amarela e mais todas as cores que couberem na celebração não de um "Brasil Grande", e não de "um país sem miséria". A alegria da comunhão vivida em cada casa e no meio da rua é de um país de muitas faces, que construiu, à margem do Estado onipresente na nossa vida, um sentimento coletivo em torno de um esporte. O futebol é uma religião pagã que encanta o maior dos católicos e desperta a fé no mais cético dos ateus.

O futebol é nosso, e a alegria que vem com ele não nos é presente de ninguém, além dos onze jogadores em campo. E, embora reafirme a constatação de que perdemos a Copa fora do campo, cabe invocar, curiosa e ironicamente, as palavras de Chico Buarque, de quem não nutro nenhuma admiração política - muito pelo contrário. Mas seu gênio musical gravou versos que, tendo ilustrado muito bem a autonomia do sentimento nacional na década de 1970, poderia muito bem nos inspirar a comemorar, sem constrangimento, a alegria que tentam expropriar da torcida brasileira neste 2014:

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

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