terça-feira, 1 de julho de 2014

O RESGATE DA TERRA SANTA

Escrevo sob os efeitos da sensacional partida entre Bélgica e Estados Unidos. Encerradas as Oitavas de Final, podemos dizer que esta Copa é, dentro do campo, uma das melhores. Afirmo isto não só na esteira do entusiasmo das transmissões televisivas, mas porque após uma Primeira Fase cheia de gols, emoções e surpresas, a expectativa é de que os jogos fossem mais modorrentos, presos ao habitual medo da eliminação inerente aos jogos mata-mata.

Não foi isto que aconteceu. Embora a média de gols tenha diminuído, todas as partidas tiveram um grau de disputa elevadíssimo e emoção até o último momento. Até mesmo nos embates que terminaram 0x0, como Alemanha x Argélia ontem, houve efetiva busca do gol e atuações que, ainda que não tenham sido tecnicamente primorosas (e muitas o foram), demonstraram um nível de empenho comovente.

Talvez isto tenha a ver com o que ouvi aqui e ali, por vezes com o tom habitualmente protocolar de quem quer agradar sua plateia: os jogadores estariam realmente empolgados pela oportunidade de jogar uma Copa no Brasil. Ainda que haja algum jogo de cena para agradar o público caseiro, posso testemunhar que efetivamente exercemos (pelo menos ainda) este poder sobre os estrangeiros. Morei na Itália por um ano e meio e o encanto dos europeus pela "magia" do futebol brasileiro é genuíno. Como não conseguimos queimar todo o capital acumulado pelas incríveis seleções de 1958, 1962 e 1970, e também acrescentamos alguma mística adicional com os títulos de 1994 e 2002 (especialmente este último, com os estelares Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo e Roberto Carlos), há um resíduo de veneração pelo esporte que se desenvolveu nesta periferia global.

Na esteira desta premissa, o que vejo é que, para além da espetacularização do futebol, decorrente da crescente atenção planetária sobre os diversos torneios, especialmente europeus (a UEFA Champions League sobre todos os demais), há um certo constrangimento em retornar-se ao jogo feio e retrancado que vinha dominando o cenário mundial nas últimas Copas.

Em outras palavras, a "nossa" Copa está boa por uma razão virtuosa e outra nem tanto. Pois além do respeito quase religioso que inspira uma postura mais ofensiva das Seleções que estiveram e ainda estão presentes neste Mundial, a chamada mercantilização do esporte também tem um dedo neste fenômeno. Com efeito, como o futebol virou um negócio que só funciona se houver televisão interessada nele, os jogos naturalmente precisam ser melhor disputados, atrair mais espectadores, os quais, obviamente, não querem elucubrações táticas e prazeres defensivos, mas jogadas espetaculares e gols em profusão.

Então, a busca por audiência e visibilidade (e o consequente dinheiro delas decorrentes) que vêm paulatinamente empurrando os times para frente no campo, acaba se refletindo nas diversas Seleções, que copiam os clubes de sucesso e recrutam jogadores que já se habituaram a jogar mais ofensivamente. Esta razão mundana é potencializada pelo fascínio que a imagem do jogo bonito brasileiro ainda exerce nas demais nações futebolísticas.

E, por conta desta verdadeira "conjunção astral", o que vemos é times altamente dedicados a conquistar uma página que seja num dos capítulos mais interessantes do Livro das Copas. Mesmo aqueles que, sabendo seus limites, fecham-se na defesa e procuram resistir ao avanço das potências de sempre, ainda assim não renunciam à vitória, armando esquemas em que o contra-ataque é feito com a dedicação e a arte necessárias.

Chegou a ser comovente ver o empenho com que times como a Argélia, os EUA, a Suíça e até mesmo o Chile enfrentaram equipes tecnicamente superiores. Já há muito tempo é impressionante (e, para nós brasileiros, assustador) constatar que alemães, ingleses, belgas, mexicanos e outros menos cotados sabem tratar a bola como costumávamos fazer num passado que vai ficando cada vez mais distante.

Em post anterior sobre esta Copa, fiz um paralelo entre futebol e fé. Pois bem, na Copa jogada no país em que nasceu e por quem jogou o maior de todos; no Mundial disputado na terra que serviu de solo para gerações de craques iluminados, vimos Seleções aqui chegarem com a reverência de quem entra em solo sagrado. Este respeito à bola e esta alegria em jogar futebol vêm alegrando nossos corações e já despertam o temor dos torcedores: depois deste júbilo esportivo, como iremos conseguir sobreviver às heresias que se desenrolarão em mais de trinta rodadas de Brasileirão?

Minha esperança é que a visita das 31 caravanas de peregrinos renove nossa fé numa parte importante daquilo que nos faz brasileiros: a alegria de jogar bola, de vê-la rolar em verdes campos. Os atletas e técnicos que estiveram - e ainda estão - por aqui podem ser como os cruzados em busca do resgate da Terra Santa. Que o exemplo deles nos resgate a todos infiéis. Que possamos treinar, jogar, comentar e, principalmente, cobrar um futebol que volte a elevar nossos espíritos.

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