quinta-feira, 3 de julho de 2014

MENOS, DAVID, MENOS...

Lutando contra a síndrome de abstinência desencadeada por dois dias sem jogos, deparei-me com um post que anda circulando pelo Facebook, chegado a mim por dois caminhos diferentes, compartilhados pelos amigos Marcus Vinicius Cruz e Rodrigo Mascarenhas. Trata-se de texto publicado por Dàvid Ranc no site do FREE - Football Research for a Enlarged Europe (como não sei inserir link, aí vai a referência do blog: ), sob o título: A Copa do Mundo de 2014 no Brasil: Melhor Organizada do que os Jogos Olímpicos de Londres 2012?

Pelo que percebi, tal seria a constatação de que todas as críticas à organização e preparação da Copa 2014 foram infundadas e decorrentes de preconceito contra países emergentes. Ainda que efetivamente haja, na Europa e nos EUA, uma carga enorme de estereótipos sobre países como o Brasil, desqualificando antecipadamente nossa capacidade de realização, devemos reconhecer que o processo de preparação da Copa no nosso país mais confirmou do que diminuiu tal percepção...

Não bastasse tanto, achei a análise de uma superficialidade quase infantil, trazendo exemplos que pouco endossam a tese sustentada pelo autor. Vejamos. Vou invocar cada trecho do texto original (em tradução livre) e fazer meus comentários a cada um deles:

"Os estádios não estariam prontos a tempo...Se eu não estiver errado... todos os estádios estão prontos e sendo usados para a Copa": só faltava algum estádio não estar pronto... O fato dos doze (ao contrário dos oito mais racionalmente propostos pela FIFA) estádios estarem prontos é o mínimo que se pode esperar de quem quer sediar uma competição esportiva. Mas o pior é que nem todos os estádios estão prontos, e muito menos a tempo. Todos os estádios estão aptos a receberem partidas, mas não necessariamente prontos. A Arena Corinthians, monumento à irresponsabilidade pública, é o maior exemplo. Há inúmeros pontos da construção por concluir, como fartamente noticiado não pela imprensa europeia, mas pela mídia brasileira, inclusive aquela mais crítica e pretensamente isenta. O Linha de Passe de uma ou duas semanas antes da Copa sentava a marreta no estádio. Não bastasse tanto, quase nenhum dos estádios foi concluído a tempo, muitos deles foram entregues muito após a data-limite de 31/12/2013. Em outras palavras, descumprimos o compromisso assumido quanto à entrega a tempo para realização de testes. Isto para não falar no entorno das arenas...

Depois desta afirmação introdutória, Dàvid Ranc passa a fazer comparações com os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012:

"Muitas sedes estavam quase vazias em muitos dos primeiros eventos olímpicos.": aqui, o Autor compara bananas com laranjas. As competições a que ele se refere são eventos de esportes que ganham destaque somente no programa olímpico, tais como hóquei sobre a grama, tiro esportivo e outros menos cotados. Nada contra, até mesmo considerando a histeria deste escriba, que em 2012 parou para ver até mesmo as competições de tiro com arco, e outro dia mesmo ficou vendo emocionantes disputas de curling. Entretanto, não há como se comparar o apelo de um jogo de Copa do Mundo (ainda que seja Coreia do Sul x Argélia, que por sinal foi excelente!) com eventos de menor expressão numa competição multi-esportiva como os Jogos Olímpicos. Além disso, londrinos estão no circuito habitual de grandes eventos atléticos, ao contrário de brasileiros, que tentaram aproveitar uma oportunidade que não terão nesta mesma geração. Portanto, a demanda por ingressos nada tem a ver com os méritos organizacionais dos brasileiros.

"O Exército teve que ser mobilizado para suprir as falhas da G4S, a empresa privada que o comitê organizador contratou para a segurança dos jogos. Com efeito, G4S não contratou guardas suficientes para os Jogos Olímpicos.": aqui, o autor simplesmente resolveu ignorar os graves episódios de invasão do perímetro do Maracanã, um deles com depredação de parte do setor de imprensa do estádio, em que dezenas de chilenos passaram como uma manada até serem contidos pelos Stewards. Houve inclusive necessidade de mobilização de forças policiais nos jogos seguintes, a fim de prevenir novos episódios.

"O Brasil tem sido acusado de exagerar no controle de manifestações... Todavia, as autoridades britânicas exageraram ainda mias do que o governo brasileiro quando no que tange à segurança. Vejam só: o Exército foi autorizado a instalar mísseis anti-aéreos em propriedades privadas próximas a sedes de eventos olímpicos.": com certeza o Autor (e isto é desculpável) não lê o noticiário da Grande Tijuca. Até mesmo os temíveis mísseis anti-aéreos foram igualmente cogitados. As instalações seriam feitas nas redondezas do Andaraí, bairro que, pela auto-rejeição dos moradores, se torna menor a cada dia. Além disso, o Reino Unido foi alvo de ataques terroristas. Desde quando a preocupação com segurança é um defeito? Chegar a qualquer estádio na Copa 2014 (e eu fui a três diferentes) foi um festival de identificação de diferentes tropas: Guardas Municipais, contingente ordinário de policiais, tropas de choque, Exército, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Fuzileiros Navais...). Aqui, não há um defeito propriamente dito, mas tão somente uma demonstração da miopia que contamina a análise do autor em questão.

"O invasor no desfile da cerimônia de abertura que chocou muita gente na Índia...": no Brasil, até onde vi, não ocorreu uma, mas três invasões de campo. Na última, durante Bélgica e EUA, o engraçadinho ficou quase dois minutos passeando pelo campo até que a segurança conseguisse retirá-lo. Isto para não falar no protesto feito por dois participantes da festa de encerramento da Copa das Confederações no ano passado...

"O Comitê Organizador mostrando uma bandeira sul-coreana no lugar daquela da Coreia do Norte...": neste caso, sempre podemos lembrar do jogo França x Honduras, em que as equipes se perfilaram, cumprindo o protocolo de abertura da partida e... não conseguiram ouvir seus hinos nacionais... E logo com a Marselhesa, um dos hinos mais bonitos e conhecidos do mundo!

Em outras palavras, não estou querendo dizer que a organização da Copa é um fiasco. Como já era esperado, na hora em que a bola rolasse, tudo iria acabar funcionando, ainda que tenhamos que ter decretado dezenas de feriados municipais nos dias de jogo, a fim de garantir um mínimo de operacionalidade às cidades-sede, ao contrário do paraíso da mobilidade urbana pernosticamente prometido pelo Governo.

Ou seja, o diagnóstico amargo que fiz antes da Copa, de que a perdemos fora do campo, continua valendo. Não estamos tomando uma goleada, até porque nosso povo supriu a inépcia governamental de que somos eternamente reféns. Invocar estudos mal-feitos, facilmente rebatíveis num post feito em menos de meia hora, não vai nos ajudar a melhorar para um desafio ainda maior, que está a 764 dias de distância.




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