quarta-feira, 10 de junho de 2015

DEFESA MONOTEMÁTICA

Outro dia, compartilhei no Facebook um link para uma reportagem que citava uma revista francesa que, antes da final da Champions League, cogitava seriamente se Messi já seria maior do que Pelé. Não li o artigo da aludida revista, pois não estava disponível, mas lembrei de outra reportagem semelhante, veiculada pela Placar há alguns anos. O periódico brasileiro, diante do impacto avassalador que o argentino causa no mundo do futebol, tentou criar parâmetros objetivos para compará-lo a Pelé. O primeiro deles era o número de gols, e a projeção que se fazia é que a quantidade de tentos de Messi acabaria muito próxima do Atleta do Século XX.

Outro critério era a contagem de títulos, pontuando-se cada um diferentemente de acordo com sua importância. E aí que reside a grande questão. O grande trunfo que se levanta quando comparava-se Pelé a Maradona, e agora a Messi, é a quantidade de Copas do Mundo conquistadas por cada um. Com Maradona era fácil, pois além de ter feito muito menos gols do que o nosso Rei (e também menos do que já fez o Messi), a sua carreira em clubes ficou muito aquém do que as realizações do Pelé pelo Santos. E, em seleções, a comparação também é favorável ao mito brasileiro.

Com efeito, embora tenha alçado o Napoli a uma posição que ele jamais ocupara no cenário italiano, Maradona ganhou dois títulos nacionais por lá, além de uma Copa UEFA, a antecessora da morna UEFA Europa League. Jamais ganhou uma Libertadores ou atuou num clube com a ampla dominância detida pelo Santos na década de 1960.

Entretanto, quando a comparação é feita com Messi, a situação se complica. Ah... mas o Messi ainda não ganhou uma Copa. A própria Placar, com o seu critério objetivo, deixou clara a insustentabilidade desta defesa monotemática. Com a conquista do último sábado, este já é o terceiro título da Champions League do argentino. Em vitórias continentais com clubes, ele já está à frente de Pelé, que só ganhou duas Libertadores com o alvinegro praiano.

Ah... mas ele não ganhou uma Copa do Mundo. Mas ganhou uma medalha de ouro em Jogos Olímpicos, e encanta o mundo todos os meses, com pelo menos uma apresentação espetacular ou uma jogada antológica. Em tempo real, com replays infinitos na Internet. E a cores. E na Europa, que sempre foi o centro do mundo no futebol.

Não estou falando que Messi é melhor do que Pelé. Não é, basta ver "Pelé Eterno" para constatar que o Rei continua sendo ele. Mas estamos próximos de incorporarmos outra síndrome de Santos Dumont. Todos nós crescemos aprendendo que o avião foi inventado por um brasileiro, Alberto Santos Dumont, que teria feito o 14 Bis voar em 1906, na frente de centenas de franceses e de câmeras que filmaram seu feito. Pois bem, TODOS os demais países do mundo atribuem a invenção aos Irmãos Wright, americanos que teriam voado em 1903, num aeroplano que se jogou de um barranco, com registro apenas fotográfico.

Depois de 100 anos, um brasileiro conseguiu montar uma réplica de 14 Bis e fazê-la voar. Ao que consta nenhum americano fez o mesmo com o modelo dos Wright. E daí? Ninguém, além de nós, acredita no ineditismo de Santos Dumont, e muita gente ignora que ele tenha sequer existido.

Pois bem, nossa irresponsabilidade histórica e nossa fixação patológica em Copas do Mundo pode levar o Pelé para o mesmo canto do mineiro de chapéu amassado. De que adianta nos apegarmos ao relato de cronistas cada vez mais raros, que contam apenas com a memória para afirmar que Pelé era inigualável? Ele fez sucesso em duas Copas (em 1962 ele jogou apenas uma partida) e estraçalhou num time escondido na periferia global.

Ah... mas o Messi não ganhou uma Copa do Mundo. Copas ocorrem a cada quatro anos, são espetaculares, muitas vezes inigualáveis. Mas o futebol se constrói a cada semana, com as façanhas que os jogadores fazem pelo ou contra seu time de coração. O argentino faz isto por um dos clubes mais populares do planeta. A cores. Com repetição na Internet. Ele não precisa ganhar uma Copa do Mundo. Na pontuação proposta pela Placar, bastava ganhar mais duas ou três Champions League, e seu escore ultrapassaria o Pelé e suas três Copas. Já ganhou mais uma, deixando o Boateng deitado no caminho.

Temos que deixar a defesa monotemática para a CBF, que ainda acredita que o futebol brasileiro é espetacular porque ganhou 5 Copas do Mundo. Só temos um produto global no esporte, a nossa Seleção. Nunca soubemos construir uma liga nacional que se projetasse internacionalmente, pouca gente conhece nossos clubes. Enquanto não dermos este passo, e com ele resgatarmos a mitologia que construiu monstros sagrados na história futebolística, Pelé terá cada vez menos chances na comparação. Não podemos deixar que ele se transforme em outro Santos Dumont. Devemos isto ao Rei.

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